
o sino
As marcas sonoras são os sons que tornam única a vida acústica de uma comunidade, que inscrevem sua assinatura nos ouvidos e espíritos daqueles que nela vivem (16). Para muitas comunidades, e entre elas São Luiz do Paraitinga, esse som é o som de um sino.
Outros sons - aboios, cavalos e cantos - são como um sino: marcos da história e vida dessa comunidade, que definem o som como uma forma de amarrar e unir as pessoas que ali vivem, por um lado, e ao mesmo tempo é capaz de expandir suas potências. Transformar o Um, a experiência individual, em Todo.
Ao ouvir o soar de um sino, até onde seu som se estende e se limitam suas linhas acústicas, aquela comunidade é o Todo por um momento, conectada a um único som, ligada por uma vibração profunda. Essa é a marca sonora, a vibração mais profunda numa comunidade.
A modernidade pode vir a suprimir essas marcas sonoras em prol de uma sonoridade mais homogênea, repleta de ruídos amalgamados que dificultam a perspectiva sonora, como acontece nas grandes cidades. Sem cair na armadilha de se agarrar a uma tradição sem propósito, é necessário observar que os marcos sonoros, por serem sons significativos e históricos dentro de uma comunidade, podem ser bons caminhos para estimulá-la a ouvir conscientemente os sons a sua volta.
Ter um ouvido consciente é o primeiro passo para conseguir fazer música e, assim, transformar o vivido e organizar, de acordo com nossa tendência anti entrópica, a experiência humana no mundo, fazer dela um sentido.
Mas, hoje, os reinos já não mais se dividem em musical e não musical (17), muito menos em manifestações culturais folclóricas, planejadas para serem executadas ao vivo, ao ar livre e constantemente entrecortadas pelos sons do ambiente, diferentemente de uma sala de concerto.
Portanto, ter um ouvido consciente serve também, em primeira instância, para poder alterar, coordenar, propiciar sons numa paisagem para que eles façam surtir determinados efeitos, de saúde auditiva (não haver poluição sonora e cacofonias (18)) mas, principalmente, de maneira que os sons de uma paisagem possam ser de tanta boniteza e importância para quem os ouve, que seja possível, através deles, deslumbrar-se com a vida.
“Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. Sobre uma frequência invisível, trava-se um acordo, antes de qualquer acorde, que projeta não só o fundamento de um cosmos sonoro, mas também do universo social. As sociedades existem na medida em que possam fazer música [...].” (19)
Na fazenda Mato Dentro, Renô quando criança acordava cedo, cuidava da roça, chamava os animais, e aprendia a tocar a viola que, recente, usou para transformar a vida em música. Lá também ouvia as histórias das cantorias que os escravos faziam baixinho ao cuidar dos campos, na fazenda que ficava ali “de a par”. Ouvia dizer que era uma “cantiga pura, de peito”, que se estendia até o grotão, no ritmo do trabalho.
Seu irmão Antônio foi o cantador com quem Renô aprendeu o brão, a cantiga tradicional de trabalho, indo junto com ele aos mutirões das roças. Hoje limpavam uma, amanhã outra, pra mais de 100 pessoas - em troca das próprias ajudas comunitárias futuras e um prato de almoço. E no meio do trabalho, um cantador do bairro solta uma linha de verso, que os outros gradualmente seguem nessa brincadeira enigmática que diverte e elabora o esforço.
A linha é uma trova misteriosa, comandada por um cantador e à qual tentam incorporar versos os outros cantadores do mutirão. Os versos são acatados ou contrariados pelo dono da linha, conforme se aproximam da resposta correta ao mistério.
Renô, ainda jovem, acordou um dia com uma linha na cabeça, e a levou pronta pro mutirão no bairro do Alvarenga, uma carta na manga. O cantador do bairro é que tem o direito da linha. Raro, alguém de outro bairro pode pedir licença, saudar os camaradas e colocar sua própria linha.
Num campo com 360 pessoas trabalhando, o que havia era silêncio. Todos receosos de encarar as respostas dos outros 25 pares de cantadores. O patrão apontou na mula com dois garrafões de pinga que foi servindo aos companheiros, chamando-os a cantar.
Renô sentiu que era para ele: destemido, soltou a linha que tinha feito na madrugada, sobre um cobertor que ele precisava de ajuda para remendar. Dali a pouco, estavam todos “cantando que nem garnizé”. Demoraram horas para descobrir que o cobertor era a festa de 13 de Maio que ele, festeiro, precisava de contribuições para organizar.
Assim, o brão é uma metaforização coletiva do mundo, da natureza ao redor - Renô conta de uma linha que fez sobre o vestido de sua noiva, a branca cachoeira que tem em seu terreno - e do trabalho que a comunidade elabora unida porque é dessa forma que ela experimenta o mundo, a natureza, o trabalho: a cultura.
Essa transformação de cultura em cultura, ressignificando seus aspectos, revolvendo e remexendo o caldeirão de referências sociais, acontece também na comunicação entre manifestações culturais que são a base conceitual e espiritual de São Luiz do Paraitinga - escopo mental de maneiras de estar no mundo compreensíveis aos luizenses.
Na infância, Galvão era acordado por sua mãe na alvorada de Pentecostes - durante a Festa do Divino Espírito Santo, para ouvir passar pela janela a Congada, tocando seus tambores e cantos. Anos depois, transformou essas passagens n’A Maricota, bloco de alvorada no Carnaval (20), que usa dos batuques “congadados”, transportando uma manifestação cultural a outra.
Metaforizar o mundo
congada na Festa do Divino Espírito Santo
Seu trabalho musical recebeu também influências diretas das cadências harmônicas dos dobrados da Corporação Musical, que ressoavam nos seus ouvidos desde a infância, e que hoje são realocadas em sentido nas suas marchinhas carnavalescas.
Hoje sua paisagem é o bairro Verdeperto, onde uma longa calçada percorre por inteiro a um lado as casas, e a outro acompanha a margem do rio Paraitinga. Galvão conta sobre um graveto que achou numa das suas caminhadas por essa calçada, e gravou seu som batucando no cimento, arrastando-o enquanto caminhava.
Neste pequeno relato se encontram tesouros da orquestração da paisagem sonora, caminho para que o mundo, e a experiência humana nele, possam ser ouvidos como música: os compositores são os arquitetos do som, que podem alterá-lo, costurá-lo, torcê-lo, orientando a navegação por entre o fluxo sonoro da cidade, produzindo com ele experiências ricas e variadas de comunidade. Como achar uma sensação sonora a partir de um graveto no chão, entendê-lo como útil para construir novas intervenções musicais e musicalizando - fruindo, curtindo, dançando - o próprio momento, banal, de encontrar um graveto na caminhada.
“O sinal sonoro mais significativo da comunidade cristã é o sino da igreja. Em um sentido bem verdadeiro, ele define a comunidade, pois a paróquia é um espaço acústico circunscrito por sua abrangência. O sino é um som centrípeto; atrai e une a comunidade num sentido social, do mesmo modo que une homem e Deus”. (21)
Todos os sons que ouvimos são imperfeitos, porque em todos há distorções de ataque. Todos “começam”, e quando começam sua anatomia se estica, se acende, antes de se manter numa linha como ele é. Para um som ser percebido por nós como perfeito, teria que começar antes da nossa existência, e se manter sem alterações até depois da nossa morte. Um som assim seria percebido, no entanto, como silêncio (22).
José Francisco, nome oficial, é Zé das Néve por causa de sua mãe, Maria das Neves, e Zé Migué por causa de seu pai, Miguel. Mas conquistou um batizado preciso pelos 32 anos trabalhados quase ininterruptamente na igreja: Zé Sacristão.
Ele me explica como que o sino da Igreja Matriz, hoje, é batido: uma corda sai do seu centro, conectada à bola do badalo (23), e deve ser batida pelo sineiro em suas laterais, fazendo o som. Zé me diz que o sino tem um som “grosso”, mas a batida “afina”. O sino toca e tem uma “importância de som”, que depois se altera porque o braço do sineiro se cansa.
Na sua época, três sinos eram embalados por cordas conectadas à uma estrutura de cambota, que permitia que um comunicasse o movimento ao outro e, assim, o badalo batia contra a bacia do sino, suas paredes, sem depender do braço do sineiro. Ou seja, nesses sinos, embalados pelo próprio movimento fluido, não havia batida de braço que os “afinasse”, era som robusto, “o fim do mundo de bonito”, como disse Zé Sacristão, e talvez mais perfeito que qualquer silêncio.
O trabalho do sineiro, então, era dominar as três cordas que alteravam esses movimentos conforme a situação e o sentimento demandados do sino. Era um trabalho meticuloso, que exigia atenção para que os sinos não dessem cambalhotas sobre si mesmos. Mas rendia momentos esplêndidos, em que os sinos ficavam 2 ou 3 minutos tocando sozinhos. Zé, nesses momentos, gostava de ficar no meio dos três, ele próprio embalado.
Os movimentos são três. O primeiro, a vida; o segundo, a morte. Um para avisar a vida: que sai ou chega uma procissão, que começa a missa ou que a hóstia foi consagrada, num dado momento do ritual - o sino repica livremente a seu bel prazer. Outra para anunciar a morte: quando alguém morria, Zé devia “chorar o sino”, uma batida riscada e ininterrupta, seguida de uma batida única e solitária.
O terceiro é uma matéria potente: toca todos os dias, às 6h, às 12h e às 18h. Três sessões de três batidas, seguidas por outras 33. E é esse estado desperto, atado a deus e ao mundo, ao qual se chega no fundo da mente quando o sino bate.
Ele bate para começar o dia - dar a vida; bate para se cumprimentar os mais velhos - relembrar os começos do mundo (24); ou simplesmente bate como um lembrete de consciência, de que se está no mundo e no agora. Quem o ouve aí se transforma nessa comunidade definida pelas linhas acústicas que ele alcança, abarca, aconchega e movimenta.
Nas cidades pequenas, há uma força cultural que é o impacto universal mesmo dos pequenos eventos: o sino repicando, alguém tocando um instrumento na rua ou uma boiada que chega na cidade. Há um poder de envolvência da comunidade, uma teia amarrada entre todos que vivem naquele espaço - e que existe continuamente mas, por vezes, se acende num evento que une a todos.
Um desses eventos marcantes era a boiada passando pela cidade, embalada pelos sons dos animais e dos homens. Alguém vinha na frente cantando, avisando o que estava por vir. As pessoas entravam em casa, fechavam portas e janelas. Restavam alguns curiosos.
Esse canto que acompanhava a boiada é o aboio, uma cantiga de tanger o boi que deixou rastros no jeito de falar luizense. Ouvindo-o revisitado na canção Saudade Danada, do Grupo Paranga, se imagina as paragens, a poeira das estradas de terra nos olhos, o ranger do carro de boi e o som lamentoso e distante dos cantos.
E ao imaginar tudo isso é possível perceber que a música popular é uma rede de recados que só na superfície é uma conexão conceitual, porque no fundo nada mais é que a mesma vibração da terra e do tecido social dos comunicantes (25), elaborada pelos seus mais atentos ouvintes.
A composição musical é um caminho para garantir essa trama de recados que se passam aos outros e à frente, mas Galvão tem outras. Em 19 de abril de 1980, reuniu mais de 200 músicos no Mercado Municipal para tocar suas composições ou de familiares, como um inventário musical de São Luiz do Paraitinga: o Manifesto Musical. O evento lançou hits e sementes.
Participar dessa rede, seja construindo ou fruindo dela, é se conectar de um jeito específico com essas vibrações atávicas, que se faz em comunidade, e que acrescenta certa magia à experiência humana. Uma sensação de pertencimento, vínculo.
Zé Sacristão me conta que na aposentadoria a vida andava sendo “bem comum”, até o padre o convidar a bater o sino numa missa. Seus olhos se acenderam ao me contar isso, como devem ter se acendido ao poder se aproximar novamente dessa magia de repicar o sino numa noite, se conectar ao povo e à terra, e acrescentar mais um instrumento na orquestra que é o mundo.
Magicizar o mundo

Notas
(16) Também tratados como marcos sonoros. SCHAFER, M. A Afinação do Mundo. Unesp, 1997, p. 27.
(17) Idem, p. 162.
(18) Sons desagradáveis.
(19) WISNIK, J. O Som e o Sentido. Companhia das Letras, 1989, p.33.
(20) Hoje em dia, diferente do seu início, o bloco Maricota sai pelas ruas no domingo de Carnaval, à tarde.
(21) SCHAFER, M. A afinação do mundo. Unesp, 1997, p. 86.
(22) Idem, p. 361.
(23) Superintendência do Iphan, Entendendo os Sinos: um breve manual.
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Entendendo_os_Sinos.pdf
(24) “Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria outro deus ou cria o mundo, a partir do som [...] O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta ou da oralidade em todas as suas possibilidades”. WISNIK, J. O Som e o Sentido. Companhia das Letras, 1989, p. 37.
(25) WISNIK, J. Sem receita, ensaios e canções. Publifolha, 2004, p. 170 apud MACHADO, S. Canção de Ninar Brasileira. Edusp, 2017, p. 177.