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rio

o rio

“[O espaço auditivo] é uma esfera sem limites fixos, espaço feito pelas próprias coisas, e não espaço contendo coisas. Não é espaço pictórico, encapsulado, mas dinâmico, sempre em fluxo, criando suas próprias dimensões de momento em momento.” (26)

 

Paraitinga é o rio que atravessa e nomeia São Luiz. Como um rio, também a cultura sonora corta a cidade em tempo e espaço, está em todos os lugares, fluida conforme se passeia pelas ruas, mutável conforme se passeia pelos anos.

 

Sempre outra, mas sempre a mesma.

 

Estar fisicamente no espaço da cidade é mergulhar na paisagem sonora que ela oferece, resultado e influência da vida que se leva nesse espaço. Uma vida que, em suas manifestações culturais, sua ressignificância, se mostra predominantemente musical - e uma música que ainda acontece nas ruas, ao ar livre, entrecortada pelo modo como a cidade acontece e não separada dela.

 

A música é invenção a partir dos objetos sonoros que a povoam, e um compositor age sobre eles em sua morfologia, buscando efeitos e condições novos. Assim, é capaz de “ampliar escutas possíveis” (27), já que o som não se prende ao suporte, mas nos arrasta como uma correnteza.

 

O espaço dinâmico da cidade, fluindo, constantemente alterado pelos sons e apresentando, assim, uma experiência rica de mundo, é como uma orquestra, cheio de instrumentos disponíveis, executados pelos seus próprios habitantes. Agir sobre eles com intenção é, então, transformar a cidade não só num espaço que contém música, mas espaço que é música.

Entre um mar de morros (28), pequenas povoações se distendiam como num berço. Um barulho intermitente marcava esses primeiros movimentos de São Luiz do Paraitinga, um silêncio protegido pelas montanhas entrecortado pela eventual passagem de uma tropa, em algum caminho entre o comércio da metrópole e o porto no litoral.

 

João Rafael imagina e identifica ainda hoje na cidade uma sonoridade assim: silenciosa e sonora na mesma medida. Hoje, um som intenso da música, dos passarinhos ou o anúncio de festa vindo de um foguete, mas também um silêncio de fim de tarde; naqueles tempos, os ruídos das tropas chegando, cantando e brincando, e o silêncio de sua partida.

 

O trotar dos cavalos também é um som marcante na memória dos viajantes (29) que, à revelia de uma pesquisa mais profunda, pode ter fincado os cascos de tal forma na sonoridade luizense que hoje é marcada por uma musicalidade mais ritmada da marchinha - tanto as carnavalescas quanto as juninas -, em oposição ao gingado de um samba.

 

Cada hora a cidade recebia uma gente. As trocas entre essas gentes marcaram uma vida cultural complexa, construindo uma identidade a partir de uma produção coletiva e diversa, e nisso se deita toda sua potência, enfim. Sem muitos recursos econômicos e encravada em seu berço de morros, São Luiz do Paraitinga achou na coletividade um jeito de sobreviver e prosperar - na vida física e espiritual.

 

No entre os dois, a paisagem sonora é uma construção que se faz e se experimenta com os outros. Som é fenômeno de efeito: algo agindo sobre outro, e o que vibra da interação é barulho. Por isso depende de outros seres, é assunto de mais de um.

 

É imprescindível, então, que a criação dessa paisagem sonora, sua orquestração no espaço da cidade, seja uma criação coletiva. A cultura popular é uma disposição de luzes  sobre um caminho para se reencontrar a clariaudiência e seu sentido de bem ouvir para bem viver, porque este caminho não se percorre a sós.

 

Para este caminho, as placas são as da intuição. Ele é feito para ser uma coisa de fluxo, não fixo. Segue como um riacho, correndo por entre as pedras, contornando-as e moldando-se a elas, mas imperativo em seu correr.

 

A cultura é moldável, forma sensível, como um riacho. Só se mantém assim porque seu indício é a intuição espontânea, não os acordos rígidos imutáveis. Só é forte assim à sua maneira. E a possibilidade de uma cultura sobreviver em suas cada vez mais novas formas passa por uma adaptação a novos modos de manifestação, conforme são sempre mutáveis as formas de viver, e incluídas nelas outros atravessamentos que o mundo moderno nos impõe, inegáveis.

 

Do centro de uma família de músicos, Camilo sente que a raiz sonora, e cultural, luizense não é um ponto de partida, mas algo que se desenvolve com o tempo. A experiência da cidade vai se aprendendo, menos num lugar institucionalizado da cultura, mas como uma coisa que “cruza nossa vivência”. Aos poucos vai se tornando uma consciência, ou, sendo trazida para a consciência essa noção atávica do caminho cultural de São Luiz do Paraitinga.

 

São Luiz do Paraitinga é um projeto de cidade-música, que começou há muito tempo e continua sempre. O desenvolvimento dessa raiz é a força que se herda e a possibilidade de contribuir com a própria força. Os resultados estéticos, nesse processo, se alteram, mas seu correr segue imperativo: está sempre em movimento, viva, correndo como corre o Paraitinga.

Antes - entre - depois

cavalhada

“O palácio é todo volutas, todo lobos, é um grande ouvido em que anatomia e arquitetura trocam de nomes e de funções: pavilhões, trompas, tímpanos, espirais, labirintos.” (30)

 

Em época de festa, às vezes a Rua do Cruzeiro fica povoada por uma família cantante. Saem da casa que fica na esquina, que é apertada para o tamanho da festividade, tocando violão e cantando espalhados pela rua íngreme, sentados nas pedras.

 

Foi essa pérola que Natália escolheu contar para falar que os espaços públicos de São Luiz do Paraitinga são facilitados pela rica vida cultural e pela conexão entre as pessoas. A sensação de pertencimento, de participação na rede que se costura com a musicalidade, é o que fortalece o cuidado com os espaços e, consequentemente, sua sobrevivência.

 

Absorver o espaço é um passo inicial para cuidar dele e, assim, fazer com que sobreviva. Escutar pode criar um envolvimento tal entre a pessoa e seu ambiente que desperte nela a sensação de pertencimento, e que cultive-se o amor por sua casa, ou sua rua, sua praça: saber que mora-se em todos os lugares de uma cidade, e com todas as pessoas que nela moram também.

 

Não escutar, por sua vez, instala um padrão de comunicação indiferente entre a pessoa e o espaço, e faz com que nos relacionemos menos intensamente com a nossa paisagem (31). Não escutar é esquecer.

 

O rio Paraitinga é chamado por Camilo de “mitológico”: correndo vivo pela cidade, ele é lembrado nas poesias mas um tanto esquecido aos ouvidos vivos da cidade.

 

Entre os dias 1 e 2 de janeiro de 2010, o rio Paraitinga, corredor silencioso, deixou a cidade submersa. O silêncio do mergulho, nessa noite, assumiu uma característica tétrica: sem pássaro, sem sino, só um rio agindo como um desconhecido. Natália consegue fechar os olhos agora e ouvir as águas subindo e as casas desabando.

 

Diante do cenário encontrado com a vazão das águas, mais uma vez o robusto tecido social da cidade se acendeu. As escolhas de reconstrução prioritária foram feitas em comunidade e começou-se o trabalho de reerguer no mundo o que nunca havia caído na memória.

 

Essa obra rendeu atribulações que marcaram a vida sonora luizense por muitos anos: os sons inquietantes das máquinas. Mas no meio de um canteiro, empoeirado e barulhento, um elemento poético foi capaz de sobreviver: um sininho de mão era tocado quando os trabalhadores encontravam uma coisa de valor sentimental entre os escombros.

 

E mesmo em meio aos sons das máquinas, rapidamente voltaram-se a passear pela cidade os sons dos instrumentos em ensaio. Rapidamente, ela reviveu, e atravessá-la voltou a ser uma experiência sonora que a cada passo se altera e apresenta novas surpresas aos ouvidos atentos. O burburinho vindo do Mercado Municipal, os sapos em tempo de chuva, a cantoria dos encontros na escadaria da igreja, as notas dispersas que mostram aproximar-se o carnaval. Para Natália, é o que coloca vida na cidade.

 

O som é a matéria de movimento que faz o espaço não ser um cenário. Numa cidade com tal proporção histórica ferrenhamente preservada, mesmo depois de derrubada, é a cultura que não deixa que ela se transforme num cenário. A cidade é viva em sua grandeza sonora.

Espaço acústico

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Notas

(26) CARPENTER, E. Eskimo. 1959 apud SCHAFER, M. Afinação do Mundo. Unesp, 1997, p. 222.

(27) SANTOS, F. Escutando paisagens sonoras: uma escuta nômade. PUC-SP, 2000, p. 78.

(28) AB'SABER, A. Os domínios de Natureza no Brasil. Ateliê Editorial, 2005.

(29) SCHAFER, M. Afinação do Mundo. Unesp, 1997, p. 98.

(30) CALVINO, I. Sob o sol-jaguar. Companhia das Letras, 1995, p. 23.

(31) TRUAX, B. Electroacoustic music and the soundscape: the inner and outer world. Routledge, 1992 apud SANTOS, F. Escutando paisagens sonoras: uma escuta nômade. PUC-SP, 2000, p. 21.

    Trabalho de Conclusão de Curso

    Comunicação e Multimeios - PUC-SP

    Maria Paula Carvalho Ferreira

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