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o pássaro

Um pássaro guarda nas asas a conexão entre céu e terra. No seu vôo, passeia entre essas instâncias, viajando entre o mais terreno e o mais celestial dos ambientes. As histórias aqui descritas são embaladas pelo tecido sonoro de São Luiz do Paraitinga e tratam da viagem entre o som da vida real e a coisa interna, celestial, desses personagens que, como passarinhos, nasceram nessa cidade e estão desde então imersos nesse ninho sonoro, ouvindo seus cantos, aboios, barulhos… E adentrando essa cantoria, às vezes comunicadora, às vezes um lamento solitário.

 

A natureza, seja ela a geografia desse espaço ou, em outro sentido, a essência primeira dos que aqui testemunharam é uma de sonoridade peculiar, que se relaciona diretamente com suas existências e, além disso, vidas.

 

Suas subjetividades foram atravessadas por todos esses sons, e se manifestam nesses textos sob formas diversas: saudade, boniteza, ancestralidade, deslumbramento, cotidiano. Partimos da pessoa à comunidade: esta primeira análise é da íntima relação da pessoa com o ambiente sonoro, a orquestra do mundo.

 

Os ambientes sonoros, os ninhos, descritos aqui são de alta fidelidade: aqueles que oferecem uma razão mais favorável entre sinal e ruído, ou seja, os sinais sonoros podem ser ouvidos com menos atrapalhamento dos ruídos ambientais (8). Há distância, ausência, espaço, respiro.

 

Esses ambientes, aliados a um hábito atento e aguçado de escuta - que tem um elemento de educação comunitária, mas também é um exercício muito pessoal -, podem proporcionar maior clariaudiência (capacidade de ouvir sons com clareza) e, por consequência, amarrar maior envolvimento, padrões de comunicação mais interativos e afetivos entre as pessoas e seu meio (9).

 

Com afeto, uma comunidade pode ouvir os sons que a rodeiam os apreciando esteticamente, e deles ser capaz de fazer música, cantigo, beleza. Trazer o céu à terra.

“As pontas do fim e do começo são enlaçadas; uma linhagem não apenas sanguínea como também sonora e musical [...] É um ciclo, “não no sentido de repetição abstrata, metronômica, mas no sentido de retorno fundamental dos eventos”.” (10)

 

 

A Rua do Carvalho é a primeira rua da cidade. Na sua esquina, uma criancinha tocava clarina. A clarina é um instrumento de brinquedo, de plástico, que era comum como a bola. Quebrava uma, ganhava outra. Não existia ficar-sem. Na clarina e na gaita foi que Thar descobriu por conta própria que “soprando, era um som; puxando, era outro”, e foi fazendo melodias, ou, re-melodiando o que ouvia do quarto de ensaios da Corporação Musical, a poucos metros de casa (11).

 

Com o tio Paulo, aluno do mestre Afonso Pinto, aprendeu o MI LÁ RÉ, e tocava pra mãe cantar - ela, os irmãos diziam, cantava como um rouxinol. Assim se segue uma linhagem sonora da cidade, uma longa linha de aprendizagens sonoras, que cruzam os bairros e as famílias, e faz com que cada acorde que alguém se dedique a tocar tenha saído de violões, violas e sanfonas muitos anos antes.

 

 

 

Esse cruzamento espacial e temporal que a música permite também foi uma percepção da memória acesa em Thar. No coro da igreja, ainda criança, descobriu uma partitura de Händel: “se ele soubesse que estava sendo executado numa cidadezinha…”. Afinal, o fio que costura São Luiz do Paraitinga, seus mestres e aprendizes, também é a corda dos pianos alemães.

 

Não muito mais tarde, foi atingido por mais um deslumbramento musical, uma abertura de mundo acontecida, como muitas aconteceram para tantos, pelo alto-falante da cidade.

 

Comandado por Zé Bigode em suas horas vagas, o alto-falante ficava também na Rua do Carvalho, especialmente audível a quem estivesse na praça, e servia aos apaixonados em busca de uma declaração, aos anúncios oficiais, às modas de viola e, um dia, ao Obladi Oblada (12), viajando da Inglaterra a São Luiz do Paraitinga, aos ouvidos encantados de Thar.

 

Conectada ao mesmo fio musical, esse que se estende a tantos tempos e lugares - mas, nesse caso, perto em ambos os parâmetros - estava Nena, esgueirando-se ao quarto dos irmãos mais velhos pra ouvir as mesmas canções britânicas. A fome de ouvir era tanta que por vezes roubava o pequeno rádio da tia Hilda pra escutar transmissões cariocas da Rádio Mundial (ainda a única que alcançava a cidade) na madrugada.

 

Hoje ainda ouve o rádio, mesmo que haja uma outra trilha persistente: no quintal, há uma goiabeira ancestral, que está lá antes da mãe e da avó; a única que sobrou entre as casas próximas. Sem ter sido podada nesse ano, deixou que os passarinhos reencontrassem o caminho até ela, se acomodassem nos seus galhos e, concentrados, fizessem a cantoria.

 

Nena refaz, como os passarinhos, caminhos antigos em direção ao som. Toda vez que ouve um foguete, por exemplo, “vai pra um lugar dentro dela”, em que a memória não é de um acontecimento, mas o sentimento de um som atávico, que se carrega hoje como carregaram a mãe e a avó.

 

O som, nesses momentos, é um material interno, simbólico na medida em que excede suas funções sinalizadoras para exercer uma função transcendente, que reverbera nos recessos da mente (13). Ele é, então, uma coisa de dentro sem cor nem forma, por vezes só o indistinto de uma sensação.

 

Essa fluidez que o som tem é o que permite que ele deixe as coisas móveis. Pio, seu irmão, colocava as caixas acústicas na janela de casa, viradas para a rua, um alto-falante auto-proclamado, estendendo seus ouvidos para toda a cidade. Anos depois, Nena o ouviu cantando na rádio Paraitinga. Sua presença se precipitou sobre o momento, alterando o agora com o que é, essencialmente, material de memória. Ouvido, voz, vida móvel.

 

A presença que se precipitou é prova de que ouvir não é só passar levemente sobre a lembrança, mas um caminho de re-viver a memória, colocar de novo vida no que já passou. E por isso que o som é uma via de mão dupla, na qual importa que se vá até ele, mas também importa como se vai - aplicar o material vivido à vida que se vive agora.

Uma linha que costura o som

pedacinho de chão

O Uirapuru é um pássaro que só canta uma vez por ano. Tem um cantigo muito variado, parece música. É tão bonito que valeu o nome do coral do mestre Elpídio dos Santos. Uma lenda diz que quando ele canta, todos os pássaros silenciam pra escutar.

 

Sandro, pra arremedar, tem que passar muito tempo em silêncio com os pássaros, sintonizado em alta fidelidade - com a intenção de que o canto do pássaro se acenda no meio dos sons da paisagem. Esse afazer é de extrema sutileza, um exercício da clariaudiência: a capacidade aguçada, que é técnica e sensível, de ouvir os sons com clareza, e ouvi-los como se fossem música. “Por gosto”, como me disse Sandro.

 

Aí ele fica ouvindo, esperando que o pássaro se aproxime, e imitando pedaço por pedaço do cantigo. A impressão do ouvido e a expressão do canto se unem, por fim, numa inteligência de percepção que incorpora o som do pássaro ao universo humano, os aproxima, estabelece uma conversa entre o homem e a natureza.

 

O passo primeiro da conversa é escuta. O primeiro nó desse intrincado relacionamento entre a pessoa e o mundo. Ela pode ser mais ou menos aguçada, e se aproximar mais ou menos da competência sonológica (15) de um fazer musical. Mas para os ouvidos atentos, a paisagem sonora se mexe, mistura, e eventualmente vira música.

 

Assim que acontece, seguindo a contracorrente do Paraitinga - rio acima - até o Pico Agudo, no tal Bairro do Rio Acima. Ali, uma casinha é chamada por Thar de Tatarana, a lagarta de fogo que nomeia Riobaldo, jagunço de Guimarães Rosa.

 

Os sapos, cigarras, passarinhos são uma orquestra que, em tanto barulho, estabelecem a quietude. Para Thar, “é quase uma vacuidade, um ar rarefeito”, tira o peso de segurar o mundo na cabeça, sai do tempo.

 

Embalado nesses sons, ele diz que não sabe reproduzir a biosfera sonora, nem a bravura do vento ou a dança do rio. Mas concorda que, estando imerso no ambiente etéreo que envolve tudo o que está ali, a música que surge é, de certa forma, a música do espaço.

 

Havia uma música espacial, na casa de Nena, além dos passarinhos na goiabeira. A falação de todos os irmãos, pra começar, e o barulho que vinha com os visitantes, rodas de música e o coral Uirapuru do Vale, cortesias brilhantes de seu pai, o mestre Elpídio.

 

Ele era sua principal trilha sonora, numa época em que o sinal de rádio ainda não conseguia ultrapassar as montanhas que rodeiam a cidade, a não ser de madrugada. E, na sala da casa, um relógio de carrilhão, preservado em perfeição na memória de Nena.

 

Dessa combinação, as músicas gravadas ao vivo por vezes ganhavam o fino brinde, perfeitamente cronometrado, do carrilhão dançando na melodia. Do Uirapuru solto na mata aos carrilhões maquinados e cronometrados, a música inventada serve, por fim, para colocar deleite no mundo em volta.

Fazer poesia é saber escutar

pássaro preto
sabiá laranjeira
azulão
elpídio e o relógio
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Notas

(8) SCHAFER, M. A afinação do mundo. Unesp, 1997, p. 72-73.

(9) SANTOS, F. Escutando paisagens sonoras: uma escuta nômade. PUC-SP, 2000, p. 25.

(10) RISÉRIO, A. Caymmi: uma utopia de lugar. Perspectiva, 1993, p. 74 apud MACHADO, S. Canção de ninar brasileira. Edusp, 2017, p. 81.

(11) Corporação Musical São Luiz de Tolosa, banda marcial da cidade.

http://corpmusicalsaoluiztolosa.com.br/

(12) Canção de Os Beatles, lançada pela Apple Records no álbum The Beatles, de 1968.

(13) SCHAFER, M. A afinação do mundo. Unesp, 1997, p. 239.

(14) FOSSE, J. Mysteriet i trua. Samlaget, 2015 apud KAGGE, Erling. Silêncio: na era do ruído. Objetiva, 2017, p. 113.

(15) “A impressão atrai e ordena; a expressão afasta e projeta. Juntas, essas atividades [...] fazem o que o Dr. Otto Laske chamou de “competência sonológica”. Laske declara que a competência sonológica não resulta da mera recepção de informação sensorial. [...] A diferença entre o conhecimento psicoacústico e a competência sonológica é exatamente a diferença entre o “conhecimento de ou a respeito de” e o “conhecimento do fazer”, isto é, entre um conhecimento das propriedades sonoras e a capacidade de projetá-las.” SCHAFER, M. A afinação do mundo. Unesp, 1997, p. 217.

    Trabalho de Conclusão de Curso

    Comunicação e Multimeios - PUC-SP

    Maria Paula Carvalho Ferreira

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